sábado, 30 de agosto de 2008

A mulher de César

Eu sei que faço sempre umas intervenções enormes, mas contrataram-me, agora aturem-me. Esta já a escrevi há uns tempos em outras paragens, mas pareceu-me adequada ao jogo desta noite, nomeadamente a um cavalheiro do Porto que vai subir ao relvado depois de o milhafre Vitória fazer o seu número de circo para a multidão embevecida.


Esta história aconteceu há coisa de 2000 anos. O pai extremoso, patrício romano, chamou-lhe Publius Claudius Pulcher, que é como quem diz Públio Cláudio Jeitoso, em bom vernáculo. Se era de facto jeitoso ou não, não faço ideia. Diz que sim, mas para o caso tanto faz. Ora o menino Jeitoso, apesar de boas famílias, decidiu fazer carreira política, tomando o partido do povo. Vai daí troca o aristocrático nome Claudius pela forma popularucha Clodius - é que os romanos educados pronunciavam Claudius como "kláudiuss", mas a populaça dizia "klódiuss". O rapaz teve algum sucesso na vida pública, conseguindo até fazer exilar o poderoso Marcus Tullius Cicero (que é como quem diz Marco Túlio Grão-de-Bico), quando foi tribuno (o Clódio Jeitoso, não o M. Túlio Grão-de-Bico).

Mas o Clódio Jeitoso teve também assinalável êxito na vida privada. Com efeito, em 62 a.C., tinha o rapaz cerca de 30 anos (idade mais do que própria para ter juízo), toca de despir a toga e enfiar um vestido de mulher. Não, não ia ao Finalmente lá do sítio, não era traveca às escondidas: ia à casa de Júlio César, onde a sua mulher (a de César, não a do Clódio Jeitoso, essa ficou mais conhecida por andar sempre de cabeça baixa) celebrava os ritos secretos da Bona Dea com o mulherio amigo. Esses rituais eram interditos aos homens. E não, o Clódio Jeitoso não queria saber como eram esses ritos, e não consta que tivesse fantasias transformistas - embora, à moda da época, provasse dos dois pratos, hábito culinário corrente no mundo antigo, até aparecerem os chatos dos cristãos e acabarem com a festança. Bom, então que fazia o Clódio Jeitoso vestido de mulher em casa de Júlio César? E recordo: não havia nenhuma festa travesti em casa de César, apesar de serem públicas as tendências efeminadas do grande conquistador da Gália. Então mas o homem não era casado?, perguntar-me-ão. Era, mas desde quando isso quer dizer alguma coisa? Esse mestre da coscuvilhice que foi Suetónio diz dele que era "uir omnium mulierum mulierque omnium uirorum" (cito de cor), que é como quem diz "homem de todas as mulheres, mulher de todos os homens".

Mas regressemos ao Clódio Jeitoso, do César falaremos noutra ocasião. Contava eu que o Jeitoso pôs uns trapinhos de mulher e foi naquela figura para a casa de Júlio César, onde a mulher deste celebrava os ritos secretos da Bona Dea, que eram só para o mulherio - a presença de homens era proibida. Mas o Clódio lá conseguiu entrar, possivelmente com as roupinhas da mana Clódia, uma das maiores cabras que Roma e o mundo conheceram, e a quem, segundo as más línguas, nem o próprio irmão escapou. Conseguiu, portanto, entrar, diz-se que com a ajudinha da escrava da mulher de César, mas uma vez lá dentro foi rapidamente desmascarado. Consta que a escrava da Aurélia, mãe de César, lhe pediu para dançar, e perante as negativas do Clódio Jeitoso Traveca, a moça insistiu, até que descobriu que era um homem que tinha à frente. Talvez o Jeitoso se tenha esquecido de fazer a depilação, ou lhe tenha caído a peruca, ou tenha tido um súbito e revelador entusiasmo, não sei.

Foi uma escandaleira das antigas, não só porque era um sacrilégio, mas sobretudo porque ao que parece o Clódio Jeitoso ia com a intenção de seduzir uma tal de Pompeia. E quem era esta rapariga? Era, nem mais nem menos, a famosa mulher de César, a tal a quem não basta ser honesta. É que César, apesar de não ter testemunhado contra o Jeitoso em tribunal pelo sacrilégio e pelo atentado ao pudor da Pompeia, disse à mulher "Filha, a porta da rua é serventia da casa", que é como quem diz "Mulher, arruma lá os teus tarecos e põe-te no olho da rua, que eu já tenho problemas que me cheguem; já não bastava andarem a dizer que quando era puto fiz de mulher do rei da Bitínia, era só o que me faltava agora tem adulto ter fama de cornudo".

Conta-se que quando lhe disseram que o repúdio da mulher e a recusa em testemunhar contra o Jeitoso equivaliam a admitir que ela andava mesmo enrolada com o dito, César respondeu que não, que disparate, que acreditava piamente na inocência da ex-mulher, mas que apesar disso preferiria que sobre ela não recaísse qualquer suspeita. Que é como quem diz "à mulher de César não basta ser honesta: tem de parecê-lo".

A que propósito vem esta fofoca com mais de 2000 anos? Vem a propósito, como já calcularam, do sr. Jorge Sousa, da Associação de Futebol do Porto, que vai arbitrar esta noite um jogo onde intervém o Futebol Clube do Porto. Até rima! Dir-me-ão que lá por a criatura ser da AFP não tem de ser necessariamente um adepto do FCP. É verdade, não tem. Pode até dar-se o caso de ser lampião, ou sportinguista, ou boavisteiro, ou arrifanense, ou coisa do género. Mas de um estigma não se livra: o de estar a arbitrar um jogo importante onde intervém um clube da sua associação.

E é aqui que entram o Clódio Jeitoso, a mulher de César e o seu bélico esposo: a quem nomeia os árbitros não lhe basta ser honesto, tem também de parecê-lo. E, convenhamos, com esta e outras nomeações do mesmo calibre - a nomeação de árbitros do Porto para jogos do FCP contra os rivais começa a ser uma tradição tão castiça como a sardinha assada no Santo António ou os distúrbios entre adeptos benfiquistas e outros adeptos benfiquistas em jogos grandes - com esta e outras nomeações do mesmo calibre, dizia eu, quem nomeia os árbitros está-se mesmo a pôr a jeito. Além de condicionar o trabalho do árbitro, que por mais honesto que seja (e eu mantenho a minha ideia de que não falta honestidade aos árbitros, falta é qualidade) carregará sempre o peso da suspeita.

4 comentários:

André . أندراوس البرجي disse...

Quanto a prognósticos, eu desejo um empate, ou uma vitória do benfica. Não por qualquer tipo de solidariedade bacoca, mas porque o benfica é mais fácil de apanhar ou manter à distância na tabela classificativa do que o porto. Receio, no entanto, que os 14 portistas que vão subir ao relvado tenham mais motivos para sorrir no fim. Além de o porto ter indiscutivelmente melhor equipa, o meu irmão, lampião incorrigível, vai ao Galinheiro. E eu, em 15 anos de idas esporádicas do meu irmão ao Galinheiro, não tenho memória de ele alguma vez de lá ter vindo sem ser com umas trombas a arrojar no chão.

André . أندراوس البرجي disse...

Não vi a maior parte do jogo. Do pouco que vi - e que portanto me impede de uma crítica justa - o porto é quem mais se pode queixar do resultado. Quanto ao árbitro, não me parece que possa haver grandes razões de queixa (mas lá está: além de ser tem também de parecer). O penálti é claríssimo, o golo dos lampiões entrou mesmo - e aqui o árbitro e os fiscais de linha, se fossem desonestos, teriam uma oportunidade de ouro para falsear o resultado sem grandes ondas.

André . أندراوس البرجي disse...

Já me esquecia de dizer: fui a casa da minha mãe a tempo de ver que o meu irmão lá regressou com as trombas do costume, e seguindo a boa tradição lampiã a primeira coisa que disse foi "roubados". Perguntou-me logo com ansiedade se o penálti tinha mesmo sido penálti, e não disfarçou a decepção quando lhe disse que sim. Enfiou-se no quarto, ainda assim, a rosnar "sempre a ser roubados". E eu começo a admirar o meu irmão, que começa a abrir os olhos e a admitir que andam mesmo a ser roubados pela direcção lampiã, que gasta rios - cascatas - de dinheiro todos os verões, com os resultados que se têm visto.

Luiz Modesto disse...

Muito com o post.
Gostei bastante de teu blog, e tomo a liberdade de inseri-lo em minha lista de "blogs nossos de cada dia".

Grande abraço e parabéns.